Celebrado em 11 de setembro, o Dia Nacional do Cerrado nos faz refletir sobre um paradoxo brasileiro. A savana mais biodiversa do mundo é também um dos biomas mais ameaçados do planeta. Mas, enquanto os alertas sobre o desmatamento soam, uma verdade incontestável emerge dos dados e dos territórios: onde há povos e comunidades tradicionais, o Cerrado resiste. Este é um reconhecimento de que a conservação da nossa sociobiodiversidade passa, fundamentalmente, por valorizar e proteger os modos de vida de quem sempre cuidou dessa terra.
Eles são muitos, com histórias e culturas diversas, e uma profunda conexão com seu território. São os povos indígenas, quilombolas, geraizeiros, vazanteiros, ribeirinhos e tantos outros que, juntos, formam a identidade viva do Cerrado.
Edianilha Pereira Ribas, geraizeira e coletora de sementes, vê no Cerrado fonte de refúgio e ancestralidade - Foto: Maria Antônia Perdigão
Para esses povos, o Cerrado não é um conjunto de recursos a serem explorados, mas uma entidade sagrada, a “casa mãe” que provê sustento, cura, cultura e identidade. Como reflete a coletora de sementes e geraizeira Edianilha Pereira Ribas. “Quando comecei a conhecer histórias dos meus antepassados, entendi que o Cerrado não é só meu bioma, mas um órgão vital para o planeta. E para além também, não só o considero minha mãe, mas avó, aquela que nas nossas angústias é refúgio e acalento. Poder fazer parte de um bioma tão rico e lindo é muito gratificante, pois com ele, por ele e através dele, me tornei sucessão de agricultores e coletores de sementes nativas.”
A narrativa de que os povos tradicionais são os verdadeiros protetores do bioma é um fato comprovado por dados. Relatórios anuais do MapBiomas mostram consistentemente que Terras Indígenas e territórios quilombolas são as áreas mais preservadas do Cerrado, funcionando como verdadeiras barreiras contra o avanço do desmatamento. Essa proteção é resultado direto de seus modos de vida, que se baseiam no uso sustentável e no conhecimento profundo dos ciclos naturais.
O Povo Kalunga, em Goiás, representa a prova incontestável de que as comunidades tradicionais são as guardiãs mais eficazes do Cerrado. Enquanto o estado de Goiás preserva apenas 30% de sua vegetação nativa, os dados do MapBiomas revelam que o território Kalunga mantém 83% de sua área intocada, um resultado direto de um modo de vida que depende do bioma em pé. Esse sucesso na conservação, construído ao longo de 300 anos de ocupação, foi recentemente validado internacionalmente, com o reconhecimento pela ONU como o primeiro "Território e Área Conservada por Comunidades" (Ticca) do Brasil. No entanto, essa proteção exemplar enfrenta o desafio da insegurança jurídica, pois a comunidade ainda luta pela regularização fundiária completa de seu território ancestral.
Além de proteger o que ainda está de pé, essas comunidades são protagonistas na cura do bioma. São as mulheres, os jovens e os anciãos que detêm o conhecimento ancestral sobre as sementes, as plantas medicinais e as práticas agroextrativistas que mantêm o Cerrado vivo e produtivo.
Sementes do Cerrado
Povos e comunidades tradicionais, guardiões do Cerrado, compartilham saberes e práticas que mantêm viva a sociobiodiversidade do bioma mais ameaçado do Brasil - Foto: Luana Santa Brígida
Um exemplo prático é o projeto Sementes do Cerrado: caminhos para o fortalecimento da cadeia de restauração ecológica inclusiva nos corredores de biodiversidade, executado pela Rede de Sementes do Cerrado (RSC). A iniciativa, com o apoio dos coletores e restauradores das comunidades locais, vai restaurar 200 hectares do bioma.
Partindo da perspectiva de que não existe restauração ecológica sem inclusão social, Natanna Hostmann, vice-presidente da RSC e Coordenadora do Projeto, destaca que as comunidades tradicionais são protagonistas no projeto. “São homens e mulheres que, há gerações, conhecem os ciclos da natureza, os períodos de frutificação e a forma correta de colher cada espécie sem comprometer sua regeneração. Essa sabedoria, combinada com o apoio técnico da RSC, garante que a restauração aconteça de maneira eficaz e respeitosa com os ecossistemas”, acrescentou a coordenadora ao reforçar a parceria das comunidades na reconstrução ecológica do Cerrado.
Natanna explicou ainda que o projeto vai além da restauração ecológica. “Por meio da iniciativa realizamos formações, oferecendo formações em coleta, restauração e gestão. A ideia é construir com essas comunidades uma forma de atuação como agentes de transformação, para que possam dialogar com o setor público e privado, destravando políticas e parcerias fundamentais para a continuidade do trabalho executado”, completou.
Outro impacto do projeto está no fortalecimento da economia local. A atividade de coleta de sementes, organizada em rede, garante renda para as famílias, amplia as oportunidades de trabalho no campo e valoriza o conhecimento tradicional. Dessa forma, a iniciativa mostra que é possível unir conservação da biodiversidade e justiça social, construindo um modelo de restauração que beneficia tanto o meio ambiente quanto as pessoas que vivem e cuidam do Cerrado. A expectativa é que o projeto deixe um legado duradouro com corredores da biodiversidade mais resilientes, comunidades mais fortalecidas e uma nova forma de enxergar a restauração ecológica como caminho de inclusão e desenvolvimento.
Ciência
Sementes coletadas por comunidades chegam aos laboratórios da UnB, onde ganham novos caminhos de pesquisa e inovação - Foto: Divulgação
Essa expertise também move a ciência. A parceria entre pesquisadores e comunidades tradicionais tem gerado inovações e conhecimentos valiosos. “É importante salientar que a RSC nasceu dentro da Universidade de Brasília (UnB) e desde então essa colaboração garante que o conhecimento científico dialogue com a prática das comunidades coletoras, transformando a forma como a própria academia faz pesquisa”, evidenciou Jamily Pereira, coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento da RSC. “Um dos marcos dessa parceria é a mudança na origem das sementes utilizadas nos estudos. Antes, os pesquisadores trabalhavam com sementes coletadas por eles mesmos, em caráter experimental. Hoje, fruto de uma parceria com a RSC, os laboratórios recebem sementes de base comunitária, oriundas do trabalho de coletores locais. Essa mudança, trouxe um impacto nos testes de pureza, germinação, armazenamento e qualidade em que deixaram de ser apenas exercícios teóricos e passaram a responder a demandas reais da cadeia produtiva da restauração”, conta a pesquisadora.
Para ela, o impacto vai além da técnica. A aproximação entre a universidade e as comunidades também transforma pessoas. “Estudantes e professores, ao lidarem com sementes comunitárias, passam a conhecer as histórias, os territórios e os modos de vida que estão por trás de cada lote. Já os coletores, quando visitam os laboratórios, podem ver suas sementes sob a lupa, entender os testes e discutir os resultados. Esse intercâmbio amplia horizontes, fortalece a valorização mútua e inspira novas perguntas de pesquisa. O retorno desse conhecimento às comunidades ocorre de forma contínua, seja em reuniões, formações, conversas no campo ou no contato direto entre pesquisadores e coletoras. Muitas vezes, os próprios comunitários enviam dúvidas, sugestões ou novas ideias de manejo, alimentando novamente a roda do conhecimento”, destaca Jamily. Essa experiência mostra que ciência e saber tradicional não competem, se complementam. E é dessa mistura que nascem as soluções para manter o Cerrado vivo e em pé.
Povos tradicionais
Do norte de Minas, Buda mostra que é possível gerar renda e autonomia comunitária mantendo o Cerrado em pé, com extrativismo e restauração ecológica - Foto: Luana Santa Brigida
Morador da Aldeia Vargem Grande, no município de Itacarambi, extremo norte de Minas Gerais e membro da Cooperativa dos Agricultores Familiares e Extrativistas do Vale do Peruaçu (Cooperuaçu), Valdomiro da Mota Brito, conhecido como Buda, pontuou que o extrativismo sustentável é um caminho de afirmação e autonomia. "Quando a gente comercializa as sementes e produtos do baru, da cagaita, do pequi, estamos mostrando para o Brasil que é possível gerar riqueza mantendo o Cerrado em pé. Nosso trabalho fortalece a comunidade e prova que o Cerrado vale muito mais vivo”, pontuou.
Para ele, o grande desafio é fazer com que a sociedade entenda a importância vital do Cerrado. Ele aponta que, além do desconhecimento sobre o valor do bioma, a crise climática impõe uma ameaça direta e crescente. “Os desafios são imensos. Como pequenos produtores, já não conseguimos produzir como antes. Vemos os frutos nativos, como o pequi, o araticum e o coquinho azedo, simplesmente morrerem. Ficamos muito tristes, pois o Cerrado ainda é visto por muitos como o patinho feio, mas na realidade ele é o socorro do mundo. É uma pena que nossos governantes e a maioria das pessoas não percebam isso a tempo de diminuir a devastação que avança por todo o Brasil”, lamentou.
Por fim, o coletor faz um apelo por reconhecimento, expondo a desconexão entre o campo e a cidade. “É fundamental que todos entendam que a nossa sobrevivência e a da biodiversidade dependem de um trabalho feito em conjunto. Precisamos que valorizem quem planta, que se atentem a quem cuida da terra, pois nós somos o pilar que sustenta a sociedade”, finalizou Buda.
No Dia do Cerrado, a mensagem que ecoa dos territórios é clara e objetiva, uma vez que para salvar o bioma, é preciso ouvir, respeitar e fortalecer seus guardiões. Apoiar as comunidades tradicionais significa demarcar e titular seus territórios, investir em cadeias produtivas da sociobiodiversidade e garantir que suas vozes sejam centrais em todas as decisões que afetem o bioma.
Publicado em 11/09/2025